segunda-feira, 25 de maio de 2009

Conforto a bordo (Por Sérgio Bernardo)

O arquiteto Sérgio Bernardo, profissional com larga experiência na aviação comercial, fala sobre a evolução dos projetos de interiores para as aeronaves comerciais e seu impacto no conforto.

Os primeiros tempos

Na primeira metade do século passado existia todo um glamour associado à própria aventura que era viajar de avião. A limitação tecnológica, entretanto, não brindava os felizardos viajantes com elementos que pudessem elevar aos céus os recursos de conforto disponíveis apenas nos grandes transatlânticos e trens de luxo da época. Os próprios aviões, barulhentos, despressurizados e com baixa autonomia de vôo, além de pouco confiáveis, se constituíam, na realidade, no grande empecilho a qualquer tentativa de se oferecer um ambiente requintado ao seleto grupo de passageiros. Tratava-se, então, de compensar tal deficiência com um serviço de bordo impecável.

A partir da metade do século mudanças mais significativas começaram a surgir quando a aviação comercial do pós-guerra se valeu da experiência e desenvolvimento tecnológico que a indústria aeronáutica acumulou nos anos de conflito para lançar novos modelos, agora mais rápidos, maiores, e pressurizados, revolucionando o conceito de voar nas travessias transoceânicas sem escalas e definitivamente encurtando a viagem aérea para um tempo que, finalmente, pôde ser medido somente em “horas”. A estrela de então se chamava Super Constellation, poderoso quadrimotor turbo hélice que reinou absoluto nos céus até ser superado pelo avô americano dos jatos puros: o Boeing 707. Junto com essas maravilhas da indústria os passageiros aéreos puderam, enfim, experimentar alguns dos requisitos de conforto já tradicionais em outros meios de transporte.

A 1ª classe nos aviões se consolidou oferecendo o que tinha de mais avançado em termos de produto diferenciado: poltronas com grande reclinação e apoio para os pés, espaçadas generosamente para proporcionar um ambiente tranqüilo e discreto. O serviço de bordo, já comparável ao padrão dos grandes hotéis de cinco estrelas, garantia o complemento necessário para simular uma atmosfera de requinte e sofisticação. Apesar de pagarem caro pelos “mimos”, que também se estendiam, em proporção menor, é claro, aos passageiros atrás da divisória (da mesma forma privilegiados viajantes), os abastados da 1ª classe ainda assim não tinham o equivalente aéreo de uma cabina no Queen Mary. Faltava-lhes o espaço e a privacidade. Pelo menos desfrutavam de banheiros exclusivos, o que mantinha evidente o tratamento diferenciado. As poltronas luxuosas desses primórdios, contudo, não apresentavam, ainda, a totalidade dos elementos de conforto que um neologismo da época, chamado “ergonomia”, viria clamar como requisitos mínimos para proporcionar ao corpo humano uma postura saudável durante todas as etapas de uma jornada pelos ares. Infelizmente a indústria aeronáutica americana custou a se dar conta dos conceitos básicos de ergonomia que já eram observados há muito no velho mundo. Foi preciso a escola européia cruzar o oceano para que a nova disciplina começasse a desviar a atenção dos projetistas para a importância das proporções e necessidades humanas no desenho e especificação das poltronas, mas isso só aconteceu um pouco mais tarde...


A era dos Jumbos

A aviação deu o seu grande salto tecnológico no final dos anos 60. Foi apresentado ao mundo o projeto do gigante Boeing 747, logo apelidado de “jumbo” devido ao tamanho descomunal e que ainda hoje se impõe como uma dos maiores aviões comerciais de transporte de passageiros em atividade. Outros “jumbos” debutaram na década seguinte e os aviões com dois corredores, chamados de wide bodies por causa da largura da fuselagem e por terem dois corredores longitudinais, favoreceram o surgimento de uma nova classe de serviço nos vôos de longo curso: a classe “executiva”.

Fatores econômicos, como a desregulamentação do mercado aéreo americano e a crise mundial do petróleo, forçaram as empresas a racionalizar o espaço interno de seus aviões e partir para uma equação simples que rateava o custo operacional de um vôo pelo espaço destinado aos passageiros e conforme o poder aquisitivo de cada um.

A 1ª classe, antes suntuosa e disputado símbolo de status, foi encurtada para tamanhos mínimos que pudessem ainda traduzir uma atmosfera diferenciada e exclusiva. Foi reduzida porque passou a ser um produto caríssimo e para poucos felizardos, pois consumia o espaço mais nobre dos aviões. A demanda por esse produto se ressentiu de imediato diante do novo cenário da economia mundial. As poltronas continuavam a apresentar as mesmas características de conforto como as do velho Boeing 707. Ainda não foi naquela década (anos 70) que o corpo dos viajantes mereceu a devida atenção. Uma novidade veio a reboque dos novos tempos: os sistemas de entretenimento com projeção de filmes em “telões” instalados nas divisórias e os canais de áudio “multiplex” disponíveis em fones de ouvido.

A classe “turística” atendia bem a procura por assentos mais baratos, normalmente vendidos em pacotes organizados por agências de viagem e destinados a um público que não se importava muito com exclusividade e serviço de bordo diferenciado. Os “tigres asiáticos” eram os modelos de eficiência da economia que começava a se globalizar e o aparelho de fax revolucionava os sistemas de comunicação. O PC (personal computer) engatinhava...

Estava aberta aí a lacuna para um novo produto destinado a um segmento de mercado que logo foi identificado pelas empresas aéreas: o executivo em viagem de negócios. Surge então uma opção para os passageiros que buscavam tratamento diferenciado e conforto a um custo acessível: a classe “executiva”. A novidade foi um sucesso imediato e preencheu rapidamente a lacuna existente no mercado, se transformando no produto de maior rentabilidade das companhias aéreas, pois trazia um consumidor de melhor poder aquisitivo para um espaço intermediário entre a apertada classe econômica e a espaçosa 1ª classe. A melhoria no conforto, entretanto, se resumia ao espaço maior e apoio para as pernas, além de alguns graus a mais na reclinação do encosto das poltronas comparando-se com os assentos mais baratos. Obviamente o serviço de bordo é que compensou as carências do novo produto, que muitas vezes apresentava poltronas originalmente de classe “turística”, reformadas para oferecer os novos itens de conforto.

A década de 80 prosseguiu sem grandes turbulências, exceto pela febre de modernização das frotas. Velhos modelos de aviões ultrapassados deram lugar aos wide-bodies modernos. Os europeus entraram na briga e um novo fabricante apresentou a sua família alada: a Airbus. Os tradicionais fabricantes americanos agora tinham um concorrente poderoso e a disputa pelas companhias aéreas apenas se iniciava. A corrida dos fabricantes de certa forma se refletiu no interior da cabina de passageiros. As poltronas de avião começaram a apresentar sinais de “customização”, palavra derivada da atenção voltada para o cliente na hora de projetar um produto. Os antigos modelos de poltronas onde aos clientes (empresas aéreas) somente era permitido trocar a cor do material decorativo deram lugar a novos produtos onde já se percebia a mão do designer buscando soluções para problemas ergonômicos. Timidamente surgiram almofadas ajustáveis para apoiar a cabeça, enchimentos reguláveis na região lombar e descansa-pernas motorizados. Poltronas com comandos elétricos passaram a ser um item obrigatório na 1ª classe das grandes companhias em função da disputa pelo segmento que continuou a se retrair.

A forte concorrência entre as empresas e a baixa demanda nos mercados em recessão jogou o preço das tarifas aéreas para baixo. As empresas procuraram manter o nível de faturamento aumentando drasticamente a oferta de lugares nos aviões, criando a apertada classe econômica que sobrevive até os dias de hoje. Distâncias mínimas entre as poltronas, quase nenhuma reclinação nos encostos e um serviço de bordo bem racionalizado.


Os tempos atuais e o milagre da multiplicação de assentos
A prioridade para definir o espaço entre as poltronas da classe econômica é puramente comercial. Nessa classe a mão do designer não tem muita influência para determinar a distância do conforto, uma vez que os argumentos dos gerentes da rentabilidade são muito mais poderosos. Observa-se uma diminuição do espaço ao longo do tempo, desde o surgimento do avião como um meio de transporte comercial regular. É verdade que as poltronas tiveram um grande avanço em termos de tecnologia e ergonomia apesar do espaço entre elas ter diminuído. Na década de 70 as poltronas de classe econômica eram mais robustas e macias, apesar dos poucos recursos de "ajustabilidade".

Com a necessidade de se promover o milagre da proliferação de assentos no mesmo espaço, uma exigência comercial para manter os mesmos níveis de rentabilidade com tarifas cada vez menores (competitividade), surgiram as chamadas poltronas "hi-density", muito mais leves e menores que as antigas poltronas "long haul". Na última década do milênio os fabricantes de poltronas se esmeraram na busca por soluções ergonômicas que ajudassem a diminuir a sensação de desconforto provocada pelos "pitches" reduzidos que a guerra de tarifas forçava as grandes companhias a adotarem. Podemos verificar alguns recursos que somente eram previstos em assentos das classes superiores. Apoio ajustável para a cabeça, descanso para os pés e almofada inflável na região lombar são alguns desses “novos” recursos que as poltronas de classe econômica apresentam como alternativa para compensar o menor espaço”.

Alguns fabricantes de aviões, principalmente as duas maiores (Boeing e Airbus), passaram a definir espaços mínimos em função de requisitos das autoridades aeronáuticas. Esses espaços mínimos, no entanto, nunca poderão ser associados aos diferenciais de conforto que os passageiros esperam encontrar a bordo de um avião. Para se ter uma idéia podemos encontrar "pitches" (distância entre um determinado ponto de uma poltrona e o mesmo ponto na poltrona subseqüente) de 29" (polegadas) em companhias asiáticas que, mesmo com o passageiro encostando o joelho na poltrona da frente, são aceitos como mínimos pelas autoridades... até os de 37" que uma empresa brasileira (Rio Sul) adotou em determinada ocasião, unicamente porque buscava um nicho específico de mercado e posicionamento bem definido para ser reconhecida como uma companhia que priorizava o conforto em detrimento da ocupação. Logicamente as tarifas eram maiores nas empresas que ofereciam mais espaço para as pernas”..


Algumas empresas procuraram seguir um padrão de conforto para dar uma idéia de continuidade ao usuário que usa uma companhia como extensão de outra nos vôos de conexão. Entre os membros da "Star Alliance" (uma parceria de várias empresas presente nos cinco continentes), depois de muita discussão entre os profissionais de marketing e a turma financeira, foi adotado um "pitch" mínimo de 32". Apesar disso muitas ainda configuravam os aviões com "pitch" de 31", a título de tolerância mínima, obviamente numa demonstração evidente de que mais vale a inclusão de uma fila adicional de poltronas na classe econômica do que aumentar o conforto dos remanescentes”.

Na classe econômica, a novidade do início desse novo século foi o surgimento de uma espécie de 4ª classe nos vôos de longa duração. Algumas empresas destinaram uma pequena quantidade de assentos de classe econômica para seus passageiros mais freqüentes (beneficiários de vantagens dos programas de "milhagens") ou os que pagam tarifas "cheias" (sem descontos). Em média 10% dos assentos de classe econômica foram configurados com "pitches" de até 38", com maior ângulo de reclinação dos encostos, apoios ajustáveis para a região lombar, cabeça e pés... além de um serviço de bordo diferenciado. Os gerentes de rentabilidade identificaram esse nicho específico, se rendendo aos apelos dos especialistas em marketing, sem abrir mão, no entanto, da concentração de assentos no restante do avião, destinados aos mais sensíveis à tarifa promocional do que aos diferenciais de conforto”.

Por causa da competitividade e em função do "benchmarking" os recursos de ajustabilidade que eram diferenciais de conforto em algumas empresas passaram logo a fazer parte do leque de ofertas da maioria das grandes companhias aéreas e são hoje em dia como uma espécie de "commodity" na classe econômica”.


Distância entre poltronas
O RBHA 121 (Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica) define alguns parâmetros que acabam interferindo na concepção das poltronas. A questão da "capacidade de deformação" e os acessos mínimos às saídas de emergência são alguns deles. O FAA americano também é responsável por grande parte da legislação vigente. O principal documento que o fabricante de poltronas tem que seguir é o TSO-C127, norma desenvolvida pela SAE (Society of Automotive Engineers) que regulamenta o conceito de 16g (16 vezes a aceleração da gravidade) para os aviões da nova geração (o B777, B737NG, ERJ-190 e o A340 são exemplos). Os parâmetros principais são referentes aos tipos de deformação que uma poltrona de avião deve suportar no caso de uma desaceleração brusca que possa atingir até uma força de 16g sobre o conjunto de poltrona + passageiro + estrutura do piso onde está fixada. Os aviões mais antigos têm que cumprir requisitos sobre forças de 9g, no máximo. Não existe, no entanto, nenhum limite específico determinado pela autoridade aeronáutica para a distância entre os assentos, bastando os fabricantes comprovarem que os parâmetros de deformação e proteção ao passageiro foram atendidos durante o processo de homologação da poltrona e do avião. Um outro parâmetro que limita a distância entre poltronas é o esforço que a estrutura do piso pode suportar. Como exemplo posso citar o B767 que só admite "pitches" de até 30" sem a necessidade de reforço nos trilhos onde a poltrona é fixada. A reclinação do encosto é determinada em função do "pitch". Quanto maior a distância entre os assentos maior será a possibilidade de reclinar o encosto. A limitação que se verifica nos "pitches" reduzidos visa não impedir o acesso do passageiro ao assento localizado imediatamente atrás e, também, permitir o uso da mesinha do encosto.

Desde o momento que não existe uma dimensão mínima estabelecida para o espaço entre as poltronas de classe econômica as empresas estão livres para determinar os seus padrões. Como existem as alianças entre grupos de companhias que pretendem oferecer níveis de conforto parecidos, seguindo a hipótese de que os passageiros compartilhados devem receber um tratamento idêntico de cada uma delas, existe uma tendência de 32" ser uma dimensão mínima "universal" para o "pitch" entre as poltronas da classe econômica”..

No Brasil, a Anac ensaiou uma regulamentação para a distância entre poltronas através de um documento que foi submetido às empresas aéreas em meados de 2007. A dificuldade de adaptação aos requisitos criou uma reação negativa na indústria e o assunto ainda não teve uma regulamentação definitiva. Aos poucos as empresas adotam medidas mais racionais em função da própria competitividade, uma vez que o mercado ainda admite a entrada de novos operadores e um dos atrativos para seduzir os “desconfiados” consumidores é justamente flexibilizar o maior bem de consumo a bordo: o espaço.

O esforço em tentar desenvolver um produto ergonomicamente melhor tem sido 'sabotado' pelos administradores das empresas aéreas. Os fabricantes de poltronas de classe econômica têm se esforçado na melhoria do conforto do assento propriamente dito. Todos, sem exceção, recorrem a escritórios de design para desenvolver os projetos, cada vez mais anatômicos e visando atender os requisitos ergonômicos de percentis múltiplos, como é o universo dos passageiros de avião. Na contramão disso tudo vem o gerente de Yield (rentabilidade) das empresas com uma equação mágica onde o aumento da oferta de assentos é a única solução para os problemas de 'pricing', 'load factor' e 'breakeven' dos vôos. Questões subjetivas como conforto, atratividade, concorrência, satisfação do cliente e outras que fazem parte do vocabulário de quem desenvolve produtos simplesmente deixam de existir quando se tenta argumentar com quem somente enxerga a frieza dos números...

Essas duas correntes antagônicas servem para demonstrar que a opinião do passageiro esbarra no confronto de duas características quando ele é questionado sobre a percepção do conforto. A poltrona, isoladamente, dá uma medida, mas o espaço onde essa poltrona está instalada é que fornece o parâmetro principal para a comparação do passageiro com as outras experiências (negativas ou positivas) que já teve. Hoje em dia o mais comum é instalar poltronas de classe econômica projetadas com todos os cuidados anatômicos e ergonômicos em espaços reduzidos e, por estarem confinadas em pitches de 31" ou menos, a reação do passageiro ser bastante adversa. Em 100% dos casos eles elogiarão a qualidade do assento, mas os mesmos 100% se ressentirão da falta de espaço para as pernas. Logo, a análise deve envolver sempre o 'environment' do passageiro e não apenas o 'living space' quando se quer estabelecer um nível de conforto para a classe econômica...

Fontes e agradecimentos: Aviation On Line/Sérgio Bernardo é arquiteto e designer de interiores. Trabalhou na área de engenharia de aeronaves (interiores) da VARIG e VEM (atual TAP-ME) e hoje é consultor independente e colaborador do site Aviation on Line (www.aviation.com.br). Contatos pelos telefones (21) 2622-3795 e 9642-5921 ou pelo e-mail sergio.bernardo@uol.com.br.

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