Se de uma divindade qualquer me fosse concedida a chance de fazer um único pedido, não seria um pedido para a vida, mas para a morte. Eu escolheria como morrer, aliás, como não morrer: eu pediria que dentre as infinitas formas possíveis de encontrar a morte, eu fosse poupado unicamente de ser buscado por ela em um acidente de avião.
Todos sabemos que vamos morrer, mas o que torna suportável a nossa finitude é ela ser indeterminada: não sabemos quando vamos morrer, por isso podemos esquecer que morreremos, e a morte torna-se para nós uma verdade encoberta. Uma verdade assim, velada, é como uma doença indolor; abstrata, longínqua, ainda que dentro de nós mesmos, ainda que nossa mais íntima e única certeza.
Por isso durante muito tempo atemorizava-me a possibilidade de um dia ser desenganado por uma doença incurável e receber a notícia de estar com os dias contados. A morte então tornar-se-ia uma verdade aberta, escancarada, inadiável. São os últimos dias de um condenado, a espera da execução, Sócrates aguardando a cicuta. Com que pavor imaginei tantas vezes essa possibilidade.
Mas diante da morte em um acidente aéreo, chego quase a desejar esse desengano, como Borges pôde desejar a finitude ao imaginar a ideia da imortalidade. Sim, porque, apesar de nos lançar diante da verdade aberta da finitude, a morte por doença incurável ainda nos permite lutar, ainda nos dá a chance de afirmar a vida contra o inelutável, de desmentir a medicina, de gritar, de chorar, de amar sabendo que tudo está prestes a acabar. Será um final de vida sublime, épico. E a doença será a minha doença, no meu corpo, inimiga íntima, que eu conhecerei intimamente, no tempo que ainda me for dado conhecer.
Não temo essa morte. Não a temeu, recentemente, o grande filósofo norte-americano Richard Rorty, que, desenganado por um câncer inoperável no pâncreas, lamentou apenas não ter lido mais poesia em sua vida. Sua última palavra foi uma afirmação da vida por meio da poesia, da poesia que afirma a vida, incluindo nela a sua finitude. Assim declara o poema de Swinburn (em tradução de Antonio Cícero): "Agradecemos brevemente/A todos os deuses que há/Por não se viver para sempre;/Por jamais os mortos se erguerem;/Por chegar, por mais que volteie,/O rio sem dúvida ao mar".
A morte em um acidente de avião é a pior entre todas possíveis. É uma aberração do destino, uma morte inumana inventada pelo que no homem há de mais humano. É inumana porque ela, como nenhuma outra, aliena o homem de sua própria morte. É uma morte impessoal, estatística, sem endereço, sem intimidade. E também sem luta, sem drama, sem adversário, sem épico. E ainda sem esquecimento, sem doçura, sem morfina. Finalmente, sem sentido.
Deus, em quem não creio, queira que eu não morra num avião. A menos que um dia, numa outra vida em que também não creio, eu me torne um piloto, e desafie a máquina, os ventos e as nuvens, e por eles seja castigado como Tâmiris por seu orgulho. Pelo menos será a minha morte, provocada por mim, e eu brigarei contra a máquina, e por pelo menos um segundo saberei por que morri.
Não tenho medo do ar, da altura vertiginosa, do céu. Seria uma morte gloriosa a do inventor do avião, morto por seus próprios cálculos, devido a uma condição atmosférica qualquer que não pôde prever. Morreria em sua máquina, em seu céu, em sua morte. Morte bela a do piloto de asa-delta tragado para o infinito pelas sereias aéreas. Gloriosa a morte de Ícaro.
Deus queira que eu morra de todo jeito. Nem peço a mais desejada de todas as gentes, a morte no sono, entrando no meu quarto em negras pantufas e fazendo-me acordar sem sustos na eternidade que não há. Não. Que eu morra no mar, num passeio de veleiro, emboscado por uma tempestade; e lutarei contra as ondas, serei um homem contra a natureza, valer-me-ei de meus braços e pulmões - e a ninguém poderei culpar se eles não me valerem. Que eu morra em um assalto, pelas mãos de um homem, que não me enfiará uma bala na testa sem que eu lhe quebre ao menos um par de dentes. Não tenho medo de bala. Já levei um tiro, e em meus pesadelos muitas vezes fui baleado na cara.
Deus não permita que eu morra em um avião. Um Airbus que não sei quem construiu, não sei quem nomeou, não sei quem abasteceu, não sei quem pilotou. Sentado espremido no meio de centenas de pessoas que eu não sei quem são.
Emboscado por um céu que não sei qual é. Emboscado por uma emboscada que não saberei qual é. E que não terá rosto. E que nem mesmo tocará a minha pele. Que me matará sem me conhecer. E não poderei lutar. E de nada valerá a força de meu corpo.
Nem minha força moral. Nem toda a minha história. E assim não serei um homem. E mal terei tempo de pensar no meu amor. E morrerei assim sem sentido. E ter-me-ão roubado a única coisa que sempre tive: meu rosto sairá nos jornais, junto aos rostos dos demais, e minha morte será apenas dos outros.
Todos sabemos que vamos morrer, mas o que torna suportável a nossa finitude é ela ser indeterminada: não sabemos quando vamos morrer, por isso podemos esquecer que morreremos, e a morte torna-se para nós uma verdade encoberta. Uma verdade assim, velada, é como uma doença indolor; abstrata, longínqua, ainda que dentro de nós mesmos, ainda que nossa mais íntima e única certeza.
Por isso durante muito tempo atemorizava-me a possibilidade de um dia ser desenganado por uma doença incurável e receber a notícia de estar com os dias contados. A morte então tornar-se-ia uma verdade aberta, escancarada, inadiável. São os últimos dias de um condenado, a espera da execução, Sócrates aguardando a cicuta. Com que pavor imaginei tantas vezes essa possibilidade.
Mas diante da morte em um acidente aéreo, chego quase a desejar esse desengano, como Borges pôde desejar a finitude ao imaginar a ideia da imortalidade. Sim, porque, apesar de nos lançar diante da verdade aberta da finitude, a morte por doença incurável ainda nos permite lutar, ainda nos dá a chance de afirmar a vida contra o inelutável, de desmentir a medicina, de gritar, de chorar, de amar sabendo que tudo está prestes a acabar. Será um final de vida sublime, épico. E a doença será a minha doença, no meu corpo, inimiga íntima, que eu conhecerei intimamente, no tempo que ainda me for dado conhecer.
Não temo essa morte. Não a temeu, recentemente, o grande filósofo norte-americano Richard Rorty, que, desenganado por um câncer inoperável no pâncreas, lamentou apenas não ter lido mais poesia em sua vida. Sua última palavra foi uma afirmação da vida por meio da poesia, da poesia que afirma a vida, incluindo nela a sua finitude. Assim declara o poema de Swinburn (em tradução de Antonio Cícero): "Agradecemos brevemente/A todos os deuses que há/Por não se viver para sempre;/Por jamais os mortos se erguerem;/Por chegar, por mais que volteie,/O rio sem dúvida ao mar".
A morte em um acidente de avião é a pior entre todas possíveis. É uma aberração do destino, uma morte inumana inventada pelo que no homem há de mais humano. É inumana porque ela, como nenhuma outra, aliena o homem de sua própria morte. É uma morte impessoal, estatística, sem endereço, sem intimidade. E também sem luta, sem drama, sem adversário, sem épico. E ainda sem esquecimento, sem doçura, sem morfina. Finalmente, sem sentido.
Deus, em quem não creio, queira que eu não morra num avião. A menos que um dia, numa outra vida em que também não creio, eu me torne um piloto, e desafie a máquina, os ventos e as nuvens, e por eles seja castigado como Tâmiris por seu orgulho. Pelo menos será a minha morte, provocada por mim, e eu brigarei contra a máquina, e por pelo menos um segundo saberei por que morri.
Não tenho medo do ar, da altura vertiginosa, do céu. Seria uma morte gloriosa a do inventor do avião, morto por seus próprios cálculos, devido a uma condição atmosférica qualquer que não pôde prever. Morreria em sua máquina, em seu céu, em sua morte. Morte bela a do piloto de asa-delta tragado para o infinito pelas sereias aéreas. Gloriosa a morte de Ícaro.
Deus queira que eu morra de todo jeito. Nem peço a mais desejada de todas as gentes, a morte no sono, entrando no meu quarto em negras pantufas e fazendo-me acordar sem sustos na eternidade que não há. Não. Que eu morra no mar, num passeio de veleiro, emboscado por uma tempestade; e lutarei contra as ondas, serei um homem contra a natureza, valer-me-ei de meus braços e pulmões - e a ninguém poderei culpar se eles não me valerem. Que eu morra em um assalto, pelas mãos de um homem, que não me enfiará uma bala na testa sem que eu lhe quebre ao menos um par de dentes. Não tenho medo de bala. Já levei um tiro, e em meus pesadelos muitas vezes fui baleado na cara.
Deus não permita que eu morra em um avião. Um Airbus que não sei quem construiu, não sei quem nomeou, não sei quem abasteceu, não sei quem pilotou. Sentado espremido no meio de centenas de pessoas que eu não sei quem são.
Emboscado por um céu que não sei qual é. Emboscado por uma emboscada que não saberei qual é. E que não terá rosto. E que nem mesmo tocará a minha pele. Que me matará sem me conhecer. E não poderei lutar. E de nada valerá a força de meu corpo.
Nem minha força moral. Nem toda a minha história. E assim não serei um homem. E mal terei tempo de pensar no meu amor. E morrerei assim sem sentido. E ter-me-ão roubado a única coisa que sempre tive: meu rosto sairá nos jornais, junto aos rostos dos demais, e minha morte será apenas dos outros.
Francisco Bosco é ensaísta e letrista.
Fonte: O Globo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário