quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Meu jato inesquecível (Por Jeferson Antunes Thó)



Era início dos anos 80 e na cabine do B-727-100 PT-SAV começávamos, o co-piloto, o engenheiro de vôo e eu, que estava ao comando, mais um dia comum de trabalho. Verdade que um dia comum apenas para nós, como se pode notar pelo espanto do controlador de vôo de serviço em Manaus.

  - Centro Manaus, PTSAV, câmbio!

  - PTSAV de Centro Manaus, prossiga.

  - PTSAV solicita ascensão para o 410, e estima través de Cuiabá aos 45.

  - SAV, poderia confirmar o tipo de aeronave e velocidade?

  - Afirmativo. Aeronave Boeing 727, velocidade Mach .85.

Faz apenas pouco mais de dez anos, e já temos jatos executivos que voam em cruzeiro acima de Mach .9, mas muitos controladores de vôo da época assustavam-se com nossos níveis e velocidades, muito superiores aos dos outros tipos de aeronaves que cruzavam o céu.
Não existia sequer aerovia que ligasse direto Manaus a São Paulo, uma perna de viagem impensável naquele tempo, mas lá estávamos nós, com aquela máquina maravilhosa que nos permitia ousar e cruzar em proa direta sem nenhum auxílio de terra e do precário sistema de navegação existente, sobre a imensidão da selva amazônica que deslizava sob nossos pés à razão de 8,6 nm por minuto.

Algumas das nossas aeronaves eram equipadas com sistema Dopller de navegação, coisa de ficção científica para a época. Ele nos possibilitava programar desvios de formações meteorológicas pesadas na proa, e a retomada do curso original algumas milhas à frente.
É fácil imaginar o conforto e a segurança que aquilo nos proporcionava. Não precisávamos fazer aquela montanha de cálculo que nos permitiam a reinterceptação relativa do curso, e que se deviam ao empirismo exigido pela própria natureza da operação.

Com o passar dos anos fui percebendo que a manutenção da proficiência em situações de emergência no 727 só era possível através de sessões em simulador, já que, felizmente em condições reais elas eram raras. Tão raras que, em aproximadamente dez mil horas voadas neste avião, passei por apenas duas situações de extrema gravidade.
Nos dois casos, aliás, responsabilizo pelas emergências, exclusivamente, o precário padrão de manutenção das empresas envolvidas e seus critérios para a seleção de pilotos e engenheiros de vôo. Para que não haja dúvidas quanto à fantástica performance dessa máquina que me apaixonou, e virtualmente me salvou e a meus companheiros de vôo, passo a narrar um desses episódios, ocorrido no início da década de 90.

Nessa época, morando no Rio, eu fora a São Paulo para uma reunião com pessoal da área administrativa da empresa em que trabalhava, representando minha categoria profissional. Apressado para tomar o primeiro vôo de volta para casa, eu ainda me despedia dos colegas quando fui chamado do interior da sala das tripulações. Era o "piloto-chefe":

  - Então, Jeferson, já te avisaram?

  - Avisaram sobre o que? - perguntei, sem saber do que ele estava falando.

  - Ué, você vai para Miami buscar uma outra aeronave para a nossa empresa.

  - É?! - Ninguém havia me falado sobre o assunto. E para quando está previsto o meu vôo?

  - Para hoje - disse ele, com a maior candura, e completou:

  - Dá uma passadinha na sala da secretária que ela vai te passar as demais informações e fazer um adiantamento da diária.

  - Ok. Mas pelo menos posso saber sobre a programação em Miami?

  - Você chega lá amanhã pela manhã, o avião vai estar pronto para o translado, talvez você nem precise ir para o hotel, dê uma passado no FAA para pegar a licença provisória, porque o 727 está com matrícula americana, e venha embora.

  - Ah sim? E quem esta compondo a minha tripulação? E a briefcase, está pronta?

  - Ah! sim, esta tudo certo. Há um pessoal da engenharia que estará embarcando aqui em São Paulo levando a briefcase e a complementação da sua diária. Quando você embarcar no Rio procure por eles dentro do avião, ok?

  Uns dez minutos depois deste fantástico diálogo procurou-me um colega dizendo:

  - Jeferson, fui escalado para o seu vôo, mas infelizmente tenho que ser sincero: não tenho segurança suficiente no meu inglês para compor como co-piloto.

  Mas como acontece na aviação, não foram necessários mais de trinta segundos para que aparecesse um ás.

  - Jeferson, estou indo com você no vôo.

  - Certo. Como está sua fraseologia em inglês?

  - Sem problema, "tá" tranqüilo.

  - Ok, se você está dizendo que está tranqüilo, tudo bem e, a propósito, você sabe quem será o engenheiro de vôo?

  - Sei é o ... ih! Deu um branco, aquele que voava 707.

  Aí, eu não tive mais nenhuma dúvida: tinha encrenca pela proa.

Fiz as contas e concluí que teria que telefonar para casa e pedir que alguém fosse até o Galeão onde eu estaria em trânsito para Miami, levando meu passaporte e roupa suficiente para quarenta e oito horas. Claro, se eu mesmo até aquele momento não estava entendendo nada, não poderia achar que em casa a coisa fosse diferente.

Por volta das oito horas da manhã do dia seguinte o 747 tocava suavemente a pista 09 do Aeroporto Internacional de Miami. Duas horas depois já nos encontrávamos na recepção da AVJET com o pessoal da empresa de leasing que, aliás, nos informou que haveria um atraso em nossa partida, em virtude de "alguns probleminhas" a serem solucionados.

Através do vidro fumê vislumbrei no pátio um velho 727 de cor indefinida, que ia do "branco gelo" ao "branco muito sujo", sendo a segunda opção a predominante. Eu ainda divagava sobre por onde teria andado aquela velha águia quando ouvi a voz junto ao meu ouvido:

  - E aí comandante, curtindo a nossa nova máquina?

A pergunta partira do nosso engenheiro-chefe da manutenção, e teve sobre mim o efeito de um bom soco.

Muitas vezes as aparências enganam, mas, ali, não era o caso. Aquela aparência não poderia enganar ninguém: o pobre 727 fora sugado até o último suspiro. Pedi que me dessem o histórico da aeronave.

Resumo: viera na década de 70 para o Brasil, onde voou por mais de dez anos. Depois, foi pousar na Turquia, de onde, por falta de pagamento, foi transladado para os Estados Unidos da América onde permaneceu no solo por um bom tempo, até ser transferido para a Nicarágua. Lá foi transformado em aeronave cargueira, recebendo reforços no piso, no trem de pouso e uma porta lateral de carga. Grande histórico, concordam?

Tenho por filosofia de vida dizer que experiência é algo que se deve efetivamente usar no momento em que precisamos dela. E foi esta filosofia que fiz prevalecer junto ao "comitê de despacho" da aeronave.

  - Ok, pessoal, se esta é a aeronave que temos que levar para o Brasil, só farei o translado após efetuar um vôo local para avaliação de desempenho.

O gringo ficou vermelho como pimentão e, olhando para mim, disse:

  - Capitão, a programação de entrega desta aeronave está atrasada e não é possível fazer um vôo local aqui.

  - Entendo Mr. John, acontece que não estou pedindo autorização para fazê-lo; eu estou afirmando que não farei o translado antes de tomar conhecimento das efetivas condições da aeronave.

  - Capitão, tem outro problema: esta aeronave estava equipada com rushkit, e como ele foi retirado, o FAA considera que houve rebaixamento de categoria. Também os decibéis do ronco dos motores excedem as determinações para vôo sobre o território americano. Desta forma, a aeronave está autorizada a fazer apenas uma única decolagem, para sair do país.

  - Muito bem, então estou me retirando com a minha tripulação para o hotel, e só decolarei amanhã pela manhã, isto é: se Miami estiver operando visual.

Os abutres de plantão, e em Miami eles são muitos, à espreita de ganhar alguns dólares transladando aviões para qualquer lugar do mundo e de qualquer maneira, já estavam se assanhando para mais uma aventura mercenária. Mesmo assim, meia hora depois fazíamos o nosso check-in no hotel em Miami downtown.

A última insistência viria da diretoria da empresa, por volta das vinte e três horas locais, ligando para o meu apartamento tentando convencer-me que tudo estava ok, e sondando sobre a possibilidade de decolarmos até a meia noite.

A minha resposta não poderia ser outra: - se vocês permitirem que eu durma, amanhã estaremos decolando ao nascer do sol.

Os primeiros raios de sol ainda não haviam surgido no horizonte quando o nosso plano de vôo estava sendo processado. Voaríamos a primeira perna de Miami até Curaçao. Recebemos por telefone as instruções de subida: - Boeing N135CA pista em uso 09, subida Miami Five Papa, após decolagem, restrição de 1.500 pés, prosseguindo com curva à direita após para a proa de Bimini.

Agradeci ao operador e quando ia para a aeronave, quando fui abordado pelo gerente do abastecimento:

  - Capitão, a sua aeronave não foi abastecida porque o pessoal que deveria vir efetuar o pagamento não apareceu ainda.

Àquela altura eu já não estava me preocupando mais com este tipo de coisa, as minhas preocupações eram bem outras.

O atraso acabou nos favorecendo. O sol nascera e o dia estava maravilhoso, temperatura agradável e nenhuma nuvem no céu.

Finalmente, a postos: first pre-flight check liste completed, pre-flight check liste completed e start check liste completed.

  - Ok. Acionando motor um.

O co-piloto levou o start switch à posição ground.

De seu posto, o engenheiro de vôo informa: start valve open.

O co-piloto confirma e faz o seu call-outs, N2 moving. N1 moving, fifthteen...

Ao call-out de 15% de N2 feito pelo co-piloto tentei movimentar como previsto a start-lever para idle, mas só consegui fazê-lo utilizando as duas mãos, tamanho o esforço necessário para deslocar a alavanca, o que normalmente pode ser feito com uma suave pressão sobre a manete.

Após conseguirmos a façanha de completar todo o procedimento, e feito os cheques correspondentes, iniciamos o táxi.

Àquela altura o tráfego era tão intenso que a fila para decolagem da pista 09 já tinha mais de cinqüenta aeronaves, mas como o nosso tráfego procedia do setor do pátio de aeronaves executivas, mais precisamente do pátio da AVJET, solicitamos à Torre Miami, após avaliação da performance, autorização para decolar a partir da interseção, o que foi aceito pela TWR.
O rush era tamanho que, ao alinharmos sobre a pista, tínhamos o número três na seqüência de decolagem, à nossa frente estavam duas aeronaves regionais de pequeno porte e, atrás de nós, na cabeceira, um outro 727-200 de uma empresa aérea americana aguardava sua vez para iniciar.

  - N135CA Miami tower you are clear for takeoff runway 09, after takeoff straigh ahead climb mantain 1.500 feet and call Miami Departure control on frequency ... for instructions.

  - N135CA willco (e nem poderia ser diferente. Com tanto tráfego, segundos na freqüência valem ouro e, isso ficará bem claro no decorrer da nossa história).

Com o clear to position check list completed, iniciei o ajuste de potência para a decolagem onde point four era o meu call-out para o engenheiro de vôo, que executava e respondia simultaneamente ground off. Aí, então, levei as manetes dos 3 JT8D-9 para máxima contínua, percebi que a velha águia parecia gemer ao peso das 145.000 lbs, 24.000 lbs abaixo do peso máximo de decolagem.
Ao atingir a VR pressionei suavemente o manche, mas a velha águia precisava de uma forcinha a mais para deixar o solo. Positive rate of climb, foi o call-out do co-piloto para que eu solicitasse gear up; ok, gear up, no lights.

Creio que não havia transcorrido mais de um segundo após a retração completa dos flapes, quando o engenheiro de vôo alertou-me para alguma anomalia em um dos sistemas, mas antes que eu pudesse fazer qualquer avaliação uma forte guinada sacudiu a aeronave.

  - Miami Departure Control N135NC mantain 1.500 feet, turn right on Bimini heading.

  Silêncio...

Como nos filmes da série "Aeroporto", o painel do engenheiro de vôo começou a acender inteiro, como uma árvore de natal. Eu ainda nem tinha processado a idéia de que poderia muito bem ter passado sem essa e ouço o co-piloto balbuciar:

  - Comandante, eu estou muito nervoso e não tenho condições de tentar contado com o controle. O meu inglês é muito ruim.

Ótimo, agora eu tinha um avião em pane, um engenheiro de vôo com experiência em outro tipo de avião e um co-piloto nervoso que não conseguiria fazer a fonia. E ainda não havia transcorrido mais que três minutos de nossa decolagem!

A emergência obrigava-me a seguir a última autorização, que era manter os 1.500 pés e proa de Bimini. Deixei que a aeronave acelerasse, buscando atingir 250 kts, afastando-me um pouco mais de Miami, que eu sabia estar com terrível congestionamento de tráfego, e mantendo-me visual sobre o mar.
Porém, na transição de 230 para 240 kts, o 727 literalmente tremeu e jogou o nariz para a direita e para baixo. Imediatamente, reduzi a potência, buscando a velocidade anterior, com a qual estávamos, pelo menos conseguindo mantê-lo em vôo. Depois de algumas "corcoveadas", a aeronave estabilizou em 210 kts, mas não consegui um ajuste adequado no manche para mantê-la nivelada. Eu tinha que manter o manche com uma inclinação de aproximadamente 35 a 45º conjugado a um grande esforço para trás.

Depois de algumas tentativas, consegui contatar Miami, percebi que o controlador estava muito nervoso, pude notar o seu alívio ao ouvir-me na freqüência. Mas para adicionar um pouco mais de emoção à história, a sua primeira informação foi a de que não recebia o nosso transponder e que devido ao excesso de tráfego não conseguia visualizar a nosso posição.

Efetuei o procedimento de rotina para falha do transponder mas nada aconteceu. Na cabine o silêncio era mortal. O co-piloto já entrara no processo de pilot-incapacitation havia muito tempo, e engenheiro de vôo segurava o abnormal check list como se fosse uma bíblia, mas a Sagrada e não a de rotina operacional. Os engenheiros estavam literalmente cristalizados, e eu estava literalmente sozinho.
Poucos minutos haviam se passado quando todas, mas todas as bandeiras possíveis apareceram no painel à minha frente e, o pior, também no do co-piloto. Restou-nos apenas a bússola stand by para navegar, um VHF, altímetro, velocímetro e VSI. Até mesmo o stand by horizon deixou de funcionar.

Uma certeza eu tinha naquele imenso rolo: a minha filosofia em relação à experiência estava nos mantendo vivo até aquele momento. Se tivéssemos decolado à noite, ou sob condições IFR, certamente eu não estaria escrevendo esta história, e provavelmente mais um comandante teria sido culpado por outra tragédia.

Estávamos em alerta vermelho, mas o Controle Miami ainda não havia nos encontrado em seu escope. Um outro controlador, que pela sua voz pausada e grave mostrava ser alguém com muita experiência, assumira a posição:

  - Boeing N135CA, por favor informe o número de pessoas a bordo, combustível, e relate a natureza de sua emergência.

  - Miami Control, estamos sem sistema de navegação, problemas de comandos de vôo, comunicação restrita a somente um canal, voando em condições visuais sobre o mar.

  - É, caro capitão, o senhor está com sérios problemas - retrucou o controlador.

  - Miami Control, o N135CA está mantendo 1.500 pés em condições visuais, na proa de Bimini. Posso nesse setor sugerir uma curva de 135 graus para tentar contato radar através do secundário?

  - Afirmativo, N135CA. Está autorizado.

  - N135CA iniciando.

  - Miami Control ciente.

  - N135CA, contato radar a 45 nm sudeste de Miami, confirme:

  - O capitão conhece a área de Miami?

  - Afirmativo.

  - N135CA, a seu critério navegue visual para Miami, reporte à Torre Miami ao iniciar aproximação final.

Mesmo depois do contato, na cabine do velho 727 o silêncio era mortal. Eu Estava tranqüilo como em poucas vezes em toda a minha carreira. Conseguira manter aquela máquina voando e o pássaro já podia voltar ao ninho.

Quando entrei na perna do vento levei um susto, para onde teriam ido todas aquelas aeronaves que estavam saindo e se aproximando de Miami? O pátio estava vazio. O aeroporto era todo do velho 727.

  - Miami Tower Boeing 727 N135CA on final.

  Acreditem, o trem baixou e, uma hora e dezessete minutos após entrar em emergência, tocávamos suavemente a pista do aeroporto de Miami.

Ao estacionar a aeronave, os fiscais do FAA e de manutenção não permitiram que abríssemos as portas até que pudessem fazer uma avaliação dos fatos. Dez minutos depois, entraram no cockpit para felicitar-me pela operação e dizer-me que ocorrera um curto-circuito geral na baia eletrônica, atingindo todos os sistemas.
Depois, levaram-me para ver, na cauda da aeronave, a assimetria absurda entre o upper e o lower rudder, o que explicava as violentas guinadas com tendências de afundar o nariz.

A minha tripulação constrangida não tinha muito o que falar, e um dos engenheiros de manutenção estava sendo assistido, porque não parava de vomitar, tamanho o estado de stress que atingiu durante toda a operação.

Sete horas de manutenção depois o N135CA estava de volta ao ar, estabilizado na aerovia, na proa do Brasil, onde por aproximadamente um ano prestou serviços.

Desta e de outras histórias ficou a minha grande admiração por esta aeronave, que permite ao piloto uma completa interação, com ela e com seus sistema, mesmo em condições extremas.

Aos colegas que ainda vivem o privilégio de comandar estes "monstros sagrados da aviação internacional", cabe a certeza que são invejados pela grande maioria dos aviadores, mesmo daqueles que voam máquinas eletronicamente mais sofisticadas e chamadas de última geração. Não tenham dúvidas: um 727 nunca os deixará na mão.


Jeferson Antunes Thó.

2 comentários:

Anônimo disse...

Bons tempos esses no qual os Comandantes tinham autonomia e principalmente conhecimentos de suas aeronaves que lhes permitia sair de uma situação dessa, certamente o mesmo não aconteceria com a filosofia que as empresas adotam hoje em dia onde só faltam proibir que os pilotos atuem na aeronave, os acidentes estão aí para provar que na aviação a pilha só tem espaço para pilotos virtuais.

Anônimo disse...

Eu adoro esse texto! Já li e reli umas 50.000 vezes... mto legal!

SEGUIDORES AEROBLOG

Total de visualizações de página